sábado, 29 de novembro de 2014

Burca: Cultura ou Tortura?


O entusiasmo é uma doença na qual a imaginação abala o poder, o fanatismo uma paixão arraigada e continuamente sustentada. O primeiro é um acidente passageiro que ataca, algumas vezes, a inteligência mais sã; o segundo uma enfermidade que a transtorna. Kant, Crítica do Juízo

Das coisas que me causam maior perplexidade é a questão da mulher nas sociedades mais radicais do oriente médio. E uso "oriente médio", ao invés de muçulmanas ou islâmicas, porque, estas, identifico com o Islã, o que muito se distingue do que vamos abordar, e do Estado islâmico.

O que fizeram e fazem de seus fiéis, esses pregadores, para tanto distorceram a cultura islâmica?

Diferentemente de outras religiões, que conseguiram "domesticar" o que os deuses tantas vezes perigosamente se tornam em muitas formas de fé (sem espanto, pois o “deus” da Inquisição era bem "selvagem") eles agravaram selvageria dos deuses, tirando daí proveito político.


Não consigo deixar de me incomodar, como em recente viagem a Munique, ao cruzar com mulheres de burca, algumas das quais sequer os olhos podiam ser vistos, cerrados por trás de uma tela negra. Como não imaginar que, por trás daqueles olhos, por vezes a única parte do corpo visível, quando vistos, olhos quase sempre aflitos e medrosos, pode haver uma mulher excisada[1]? 

Há ali, oculta da vista dos homens, alguém que talvez tenha se casado sem amor, e para quem a sexualidade possui tão somente uma função reprodutiva e neurótica. Aqueles olhos desprovidos da liberdade, senão a de olhar, olhar, mesmo assim furtivamente, e, rapidamente, “desolhar”, como se olhar fosse a única fuga, o único “pecado” ou crime, a única transgressão possível.

E é.

Uma mulher sem direito a um rosto, a quem foi roubado o comezinho direito ao corpo e à cor, uma mulher condenada ao preto. E se está passiva ou mesmo conformada, é porque embotada pelo peso da repressão, ou, pior, pelo medo à mais terrível das mortes: a lapidação.

Incomoda a visão de meninas entrando na puberdade, adolescentes sem nenhuma, ou quase nenhuma, leveza, tão característica, as cabeças cobertas, não raras vezes por quase a totalidade do rosto e do crânio, e os ombros fatalmente curvados pelo peso de toneladas de repressão. Nas costas carregam gerações de machos destruidores, de sexo sem prazer, gerações de mulheres física e/ou espiritualmente excisadas.


O cheiro que algumas deixam ao passar (não se choque), não é uma rima, um caminho no ar a atrair os sentidos, mas um rastro, a demonstrar que o banho, que pressupõe o corpo, a nudez, o toque supostamente masturbatorio, é prática reduzida ao essencial, ou até a menos, bem menos que o essencial. Logo uma civilização que tanto prestigiava o banho. 

Me incomodam, não posso negar, e não pelo cheiro, mas por elas, e por mim.

Por elas, por motivos óbvios, são as vítimas reais e carnais; e também por mim, porque não? Sempre me considerei um libertário, um homem que tem a convicção que a intervenção do Estado na vida privada deve ser mínima, o que não acontece por lá, mas que também crê que o mesmo deve acontecer nas relações privadas: que cada um viva e deixe viver! E da forma que melhor lhe aprouver, respeitando as diferenças.

Entretanto, esse mesmo homem não consegue, por outro lado, emprestar à sua visão o que alguns chamam de "relativismo cultural", ou “culturalismo”, e com isso, com esse conflito quase insolúvel, se aterroriza, e sofre, bem menos, é óbvio, mas sofre.

Ora, isso é cultural, me dizem, é preconceito, visão etnocêntrica e ocidentalizante, que nega as diferenças entre culturas, a tudo querendo emplastrar, o que você é, me acusam, é um falso libertário, um preconceituoso.

Mas não é disso, infelizmente, que se trata.

Cultural?

Ora, talvez fosse interessante, rapidamente e como forma de referir, trazer a questão um pouco para próximo de nós. Isso, aqui mesmo, leitor, no Brasil, pois tivemos uma questão semelhante, embora nem de longe idêntica, guarde-se as proporções, mas de todo modo também aviltante.

Seria lícito aceitar como “cultural” o fato de ter havido em nosso país, e há não muito tempo, destaque-se, a doutrina do "inferior valor psíquico da mulher frente o homem", razão pela qual a mulher casada era considerada, pasmem, relativamente incapaz (art. 6o, II, do Código Civil de 1916)?

Isso, me perguntarão os da nova geração, imaginamos que tenha sido há muito, muito tempo... infelizmente, não, somente em 1962, pouco mais de meio século separado de nós, portanto, tal violência à mulher veio a sofrer modificação, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/1962). E essa postura do Estado e da sociedade só veio desaparecer por completo, ao menos juridicamente e em tese, pois socialmente a situação em certos lugares é constrangedora, apenas com a Constituição de 1988. Não, não eram nossas bisavós as vítimas dessa violência, eram nossas mães.

Cultural?

Minha perplexidade beira o paroxismo quando lembro que foi a civilização islâmica que nos legou o fabuloso Mil e Uma Noites, carregado de um nem tão sutil erotismo.

Essa mesma civilização islâmica, amante dos banhos, do qual falamos acima, à qual Lo Duca, na apresentação do “L’Érotism des “Mille et une Niuts””, se refere como a que “integra o erotismo à vida[2], e nesse mesmo livro Lo Duca traz uma citação do Profeta, espante-se: “La femme est votre jardin, cultivez-la”.



Mil e uma noites, ao fim das quais o poder tirânico e masculino do rei Xeriar se viu derrotado pelo erotismo e pela, porque não? literatura de Xerazade. E talvez esteja exatamente aí, como em tantos outros arquétipos do perigoso amor sedutor e “destruidor” – e assim é em todas as variações do mito das sereias - talvez esteja aí, no domínio de Xerazade, a razão para tanto medo, travestido de ódio, às mulheres.






“Mil e uma Noites” e de outros relatos eróticos, dos quais quase violentamente, e com imensa tristeza, me lembrei nessa mesma viagem, ante um afresco, na parte dedicada à, agora sim, Civilização Islâmica, no museu Pergamon, em Berlim. Uma esmaecida pintura retrata uma mulher "com poucas roupas e em nítida posição de "folguedos" com um parceiro", nos conta a curadoria.

A mulher, no afresco, está hoje quase apagada pelo tempo, e totalmente apagada pela ignorância autoritária, na vida carnal e contemporânea. E real, por demais real.


O que fizeram com, aqui sim, a cultura dessa civilização?

O mesmo que fez Confúcio com a arte erótica chinesa[3]: destruíram-nas...

Cultural?

É óbvio que não! O que presenciamos é a deformação de uma cultura e seu massacre, a degenerescência da expressão artística de um povo, em nome do poder e de uma (distorcida) religião e da torturante imposição de um anacrônico patriarca.


E de forma alguma falo de um suposto erotismo estereotipado que alguns ocidentais viam, e ainda vêem, nas mulheres de burca, como se houvesse algum mistério sedutor nos olhos femininos por trás dos panos negros, do qual um bom exemplo é o anúncio, do século XIX, do perfume "Cocaína em Flor".

Mas não há, nem pode haver, erotismo na submissão do parceiro, no prazer anulado, não há qualquer erotismo em tal tipo de perversão, poderia haver pornografia, se muito. Isso sim é preconceito, e, como tal, deve ser criticado.

Cultural?

Ah, mas fala-se de uma cultura em sentido lato, e não em manifestação artística!




Eis uma visão esquizofrênica do que seja cultura, como se nos fosse dado pensar numa cultura desvinculada da história de um povo e de seu inconsciente, ainda mais sendo essa história tão rica. Não existe cultura sem tradição, nem que seja para uma ruptura consciente dessa mesma tradição.

Será isso mesmo, eu que me considero um libertário, que tento olhar com igualdade as diversas culturas, me vejo levado ao conflito, ao repelir essa manifestação de violência contra a mulher, feita em nome de uma suposta diversidade cultural? Como conciliar este paradoxo, como demolir, isso possível, tais argumentos?

AS SEIS VERTENTES DO “CULTURAL”

Essa visão "cultural" passaria por, pelo menos, seis importantes vertentes: a religiosa, a política, a cultural em sentido estrito, que vimos acima, a cultural em sentido lato, que perpassa pela ótica sociológica e antropológica, a jurídica, e a filosófica, que, de certa forma, abrange todas as outras.

Tentemos, dentro das estreitas fronteiras de um artigo, verificar uma a uma, para ver se de preconceito se trata, ou se, realmente, tal suposto relativismo é inaceitável e sua aceitação passaria, necessariamente, pelo paternalismo demagógico, pela preguiça de pensar e pelo comodismo, ou, pior, e talvez mais provável, pela cumplicidade silenciosa, pois negaria àquelas mulheres o direito à dignidade.

A CULTURA COMO RELIGIÃO

Comecemos pelo religioso. Seríamos incapazes de aceitar a liberdade religiosa do Islã, ao recusarmos a pregação dos aiatolás, numa canhestra e anacrônica Cruzada?

Não, o Islã pouco ou nada tem a ver com isso, Jacques Derida, em “Foi e Savoir”, enfatizou que “o Islã não é o Islamismo (...) mas este é exercido em nome daquele”. Devemos, então, pensar o que é e para que se presta a religiosidade:

É um exercício do "demasiadamente humano" em busca do conforto e, numa vertente pouco mais sofisticada, do sublime.

Se tomarmos em conta que nossa lente deve ser a da mulher - ou estaríamos vestindo o masculino do qual, necessariamente, caso queiramos com alguma boa vontade prosseguir, devemos nos despir - por uma ou outra vertente do sentimento religioso, o que vejo caminhando nas ruas é a negação do espiritual.

Do ponto de vista do conforto, nem a mais medíocre das criaturas se convencerá que é possível obter algum conforto espiritual, mínimo seja, em estado de total sujeição e aniquilamento da individualidade, aqui representada pela fatal e trágica ausência de rosto e pela negação ao conforto da cor.

É necessário dizer que está fatalmente fechado o caminho para o sublime? Sublime que Kant definiu como a capacidade de olhar o poder revelado na natureza, “sem medo e de conceber a superioridade de nosso destino”. Seria acreditar ser possível que tal caminho passe pelas portas da iniquidade, pela submissão e pela inferioridade do destino da mulher, e que se esconde atrás de grades que o separam da liberdade.






Querer perceber o Islã pelas Sharias[4] dos atuais Aiatolás, repito, atuais, seria o mesmo de tentar entender o cristianismo pelos olhos de Torquemada, ambos exemplos de deformação e perversão de uma religião. É conclusão tão absurda quanto nefasta.

Não, concluo, não se trata de desrespeito à identidade religiosa.

A CULTURA COMO POLÍTICA

Politicamente, mesmo num indesejado Estado religioso, religião e cultura devem evitar se relacionar com a política, mas, se o fizerem, que seja somente como aliadas da liberdade, jamais para aniquilá-la, embora, reconheço, infelizmente não é isso que comumente acontece.

Aceitar passivamente tal estado de coisas em nome de uma suposta diversidade política, nos levará à teratológica conclusão de que estaríamos sacrificando a liberdade em nome dessa mesma liberdade. E se não existe liberdade, a política, como quero entender, inexiste, logo, de diversidade política tampouco se trata.

A CRUELDADE DA CULTURA COMO CURIOSIDADE ANTROPOLÓGICA

No que se refere ao socio-antropológico, e perdoe a necessidade de aqui fundi-los, dada a exiguidade de tempo e espaço, me parece que, no mais das vezes, tal “respeito” à identidade passa por certa curiosidade mórbida e perversa, pois somente um espírito com esse tipo de curiosidade para querer tornar a mulher um laboratório de teses acadêmicas, cobaias,rattus norvegicus, para respeitar tal despautério, sem nele querer interferir, em nome de um suposto culturalismo.







A CULTURA COMO JURIDICIDADE E UMA NOVA ORDEM JURÍDICA MUNDIAL

Juridicamente, e análise jurídica é aqui importante, quando menos se pensarmos numa suposta vedação a qualquer forma de intervenção nesse estado violento de coisas, mesmo pacífica, impossível não se destacar o desrespeito à dignidade da pessoa humana e sua relação com uma desejada (nova) ordem jurídica mundial, que se não tolera mais isolacionismos cruéis e autoritários, tampouco dá espaço para uma cômoda (e conivente) não intervenção, em nome da diversidade.

Sem sombra de dúvidas, estamos diante de direitos de personalidade, direitos fundamentais por excelência, no caso, o direito à imagem, o direito ao corpo, à individualidade, pois, como ser um indivíduo entre milhões privada do corpo, reduzida a um olhar furtivo (também no sentido de tantas vezes furtado)? Elizabeth Roudinesco nos lembra que o “véu (...) simbolicamente, as proíbe de falar em seu próprio nome”, direito da personalidade por excelência .

Quando a ordem jurídica mundial aprofunda, a partir do neoconstitucionalismo, seus fundamentos na dignidade da pessoa humana, quando o mundo, juridicamente falando, volta os olhos para a linha traçada por Kant, de ter o homem como fim em sua dignidade, e não como meio, vemos mulheres usadas como meio: meio de sustentação pseudorreligiosa, ditatorial e fálica, estruturada para, aniquilando o feminino, reduzi-lo a pouco mais que nada, ou a nada.

Hoje sequer o direito a ser Xerazade lhes é dado: seriam lapidadas antes da terceira noite.

Em se tratando de direitos humanos universalmente conquistados, rupturas institucionais que libertaram os historicamente re(o)primidos, uma vez estabelecidos por qualquer sociedade, criam um marco civilizatório de não-retorno, numa visão universalizante da jurídica vedação ao retrocesso, aplicável, esta, a Estados soberanos. E, uma vez criado esse marco, tais conquistas deixaram de pertencer a esta ou aquela sociedade, e tornaram-se patrimônio da humanidade. Inviável, pois, qualquer tentativa de, retrocedendo, aniquilá-los e não abraçá-los, não como característica particular de uma ou outra cultura, de um ou outro Estado, mas do homem como um todo. Na medida em que esse homem, universal e sem fronteiras, alcançou determinada conquista igualitária, inadmissível a reação e, muito menos, o retrocesso.

Definitivamente, não posso aceitar como “cultural” uma teocracia totalitária com ares medievais.

E é justamente a partir dessa visão universalizante que não temos como aceitar que o homem, visto em sua totalidade, seja ainda entendido apenas a partir da dicotomia ocidente/oriente, pois determinadas conquistas referentes aos direitos humanos, repita-se, não podem ser, e não são, como alegam alguns muçulmanos, apenas frutos de uma organização exclusivamente ocidental, a ONU, cuja legitimidade não é reconhecida pela maioria de seus líderes religiosos radicais, como se apenas os ocidentais tivessem direitos.

E, sublinhe-se, a defesa dos direitos do homem não é uma conquista unicamente da ONU, mas remonta à Declaração dos Direitos do Homem, de 1798 (seria possível furtar da humanidade a Revolução Francesa?), ou a antes, muito antes, à Magna Carta, de 1215, do rei João Sem Terra.

E suspeito dessa dicotomia ocidente/oriente, porque, em última análise, somos filhos de uma mesma linhagem, de uma mesma, agora sim, e isso é fundamental, de uma mesma cultura, aquela que Derida denominou “cultura abraâmica”: judaica, cristã e islâmica. Somos todos herdeiros de Abraão, o que sugere, como em todos irmãos, que nossas diferenças, embora tal afirmação nada tenha de científica, talvez sejam muito mais neuróticas que culturais (e não nos é dado esquecer que Cristo salvou Madalena da lapidação, que ainda hoje é praticada em alguns lugares).


Os direitos humanos, no caso, os direitos das mulheres, por elas próprias tão duramente conquistados, não o foram apenas ante um Estado, qualquer um, seja ele laico ou religioso, e não são conquistas apenas das mulheres, importante frisar, mas também se referem, dentro de uma suposta e desejável (nova) ordem mundial, a todos os seres humanos, e aqueles que creem na possibilidade dessa nova ordem, única utopia ainda possível, não podem negligenciar em afirmar que são conquistas que podem ser estendidas a quaisquer formas de sociedade, pois dizem ao ser humano, independentemente de onde ele viva, e que também podem (e devem) ser moldadas, repetindo, moldadas, e não impostas, a todas as formas de cultura e religião, o que prova que não tratamos aqui de uma questão local, ou de intolerância intercultural, mas universal, adaptável, pois, a toda e qualquer sociedade e cultura.

HABERMAS E A CULTURA COMO (PRÉ)COMPREENSÃO E O DIÁLOGO POSSÍVEL

Visto que nossa abordagem tomou a ótica da Filosofia, o que, em última análise abrange as acima vistas, inegável que tais práticas não poderão mais ser admitidas, se tomarmos, como já dissemos, como paradigma a visão kantiana do homem como fim (em sua dignidade), não como meio, meio de submissão a regimes, religiões, sociedades calcadas no patriarcado.

Então, já que se impõe, o diálogo seria possível? Como começá-lo?

Habermas nos oferece uma maneira de tentar dialogar acerca de determinados valores, de tal forma a que as dissonâncias culturais encontrem um ponto de harmonia, facilitando a absorção de valores universais, inegavelmente existentes, mesmo se entre culturas tão díspares.






Todos temos, ele ensina, em “Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade (Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade, volume II, 2ª Ed.) independentemente da cultura e religião, uma “precompreensão” de determinados valores, ou melhor, kantiana[5], empírica e anteriormente falando, certos sentidos (na mesma raiz de sensível) universais ("fundantes") tais como amor, tristeza, morte, felicidade, e, principalmente, para o que aqui tratamos, liberdade. 

A partir do momento em que trazemos esses valores (sentidos) universais, ou fundantes, da precompreensão para o nível da compreensão, eles perdem sua universalidade e, inevitavelmente, sofrem alguma distorção.

Explicando melhor: no exato momento em passamos a "compreendê-los", ou seja, os trazemos para o nível intelectual e individual, ou seja, cultural, passamos a percebê-los a partir do olhar dessa mesma cultura, e irremediavelmente os traímos, dificultando (traduttori traditori), ou mesmo impedindo, o possível e desejado diálogo entre os interlocutores dissonantes, prevalecendo a discórdia e instaurando-se, talvez irremediavelmente, a Babel. Tal diálogo, então, só será possível se ambos os interlocutores tentarem manter-se no nível da precompreensão, de forma a, afastada a compreensão, possamos afastar as dicotomias culturais, os conceitos, e, por via de consequencia, os preconceitos

Importante frisar que essa “precompreensão” nada tem a ver com "pré-conceitos", pois, a partir de cada cultura isoladamente considerada, o conceito, logo, também o preconceito, só pode se dar a posteriori, a partir, é óbvio, não de uma “precompreensão”, mas de uma “compreensão”, quando então, e só a partir daí, se tornará “conceitual” (apenas compreensível a partir de determinada cultura). E isso nos leva à conclusão de que o próprio conceito se instalará, na verdade, depois, muito depois da precompreensão do que seja liberdade, e, uma vez em nós incutido, é que nos sugerirá ideias preconcebidas, (pré)conceitos, enfim, e não antes.

Logo, a defesa de valores universais (e ideais), livres de quaisquer atavismos, ou, senão livres, mantidos sob cautelosa guarda, é possível, desde que saibamos nos manter dentro do limite da precompreensão, o que, rigorosamente, repito, nada, nada tem a ver com qualquer forma de preconceito, só assim teremos um ambiente propício ao entendimento.

A partir dessa percepção, não me parece razoável acusar de preconceituoso o que se encontra ainda no nível da precompreensão, e tampouco me parece factível estabelecer qualquer conexão com um valor (e não conceito) universal de liberdade - mesmo se dentro de determinada cultura - com o aniquilamento do corpo, e, mais intensamente, da sexualidade, a destruição do indivíduo em sua dignidade.

Há determinadas práticas excisivas que consistem em não só a retirada do clitóris ou dos grandes lábios vaginais, mas na infibulação, o fechamento parcial do orifício genital por meio de sutura, com o único propósito de retirar da mulher qualquer possibilidade de prazer sexual, como espantosamente nos relata Somail Waris Dirie, modelo, ela própria vítima dessa prática. 






A destruição do indivíduo em sua dignidade é de tal forma trair uma precompreensão do que vem a ser liberdade, que não há – e nem pode haver – como aceitar as diferenças, culturais ou não, e jamais chegaremos a um consenso do que seja liberdade, a partir da sua própria negação.

A dignidade solapada, não seria resultado, em suma, apenas de uma “traição”, uma deturpação da “precompreensão”, a partir de uma compreensão, da ideia de liberdade, mas sua própria negação, seu aniquilamento.



E isso, infelizmente, é que torna, se não houver alguma mudança por partes dos opressores, qualquer forma de diálogo harmonioso inviável. Quem, afinal, inviabiliza o diálogo possível, embora, infelizmente, não provável? Quem o intolerante?

Não, devo tranquilizar-me, não há em mim qualquer islamofobia, qualquer carga de preconceito ou etnocentrismo, desculpem-me os ingênuos e os nem tanto, ao contrário, não são culturas o que nos separam, mas as condutas dos dominadores, dos tiranos, dentro determinada sociedade, ainda que disfarçadas de “cultura”, é que inviabilizam o desejado diálogo. E, exatamente isso, justifica a estranheza e eventuais pensamentos de intervenção, desde que pacíficas, é claro, a partir do convencimento, mas, sem liberdade, como fazê-lo?

Qualquer pessoa que acredita numa possível e desejada ordem mundial calcada no humanismo não pode aceitar, em nome de suposta identidade cultural, tamanha negação desse mesmo humanismo, sem um espaço mínimo de conformação individual e de gênero.

Se afasto a angústia da dúvida, outra maior se apresenta: a de não conhecer uma forma de ação que seja aceitável.

UMA TARDE ALEMÃ

Retorno às ruas de Munique, meus olhos passeiam por essa cidade musical e alegre, um pouco mais tranquilos, ou ao menos nem tão angustiados pela perplexidade que me assaltava.

Vejo que se aproxima de mim outra mulher vestida de nuvem negra, como sempre, apenas os olhos a realçam. A olho com atenção, confesso que não consigo afastar meu descontentamento com o homem que, aparente e tiranicamente, conduz aquela família, pois é uma família. Não consigo deixar de enxergá-lo, colorido e levemente vestido, como um pequeno torturador.

É uma adolescente! Claro que é uma adolescente!

Como sei que é uma adolescente, se até seus pés estão cobertos?

Não, não deliro. É uma adolescente! Há, em seu andar, uma leveza excitada que só as adolescentes possuem, da pequena fenda que deixaram, rasgo, no seu rosto oculto, derrama-se a profusão de luz dos olhos que pontuam um brilho explosivo e ansioso, sua burca, seus panos negros colorem-se de dentro para fora, até cobrirem-se de cores, nem tão imaginárias, dos pés à cabeça, há uma ebulição na pele oculta que nenhuma Sharia detém.

Sua leveza e beleza adolescentes, mesmo encobertas, igualam-se a de todas as meninas que passam pelas ruas de Munique, exuberantemente coloridas nesta tarde de verão hormonal e alemã; se igualam, mesmo dentro de uma cela de negro e medo; se igualam, negro transubstanciando-se cores, agora sim, num erotismo quase sagrado a que poderíamos chamar de luz.

É Xerazade, seu nome.

Vai, menina, talvez seja você que restaurará entre os seus - e entre nós - o “império dos sentidos”, noite após noite colhendo manhãs.





E um sopro de esperança e sensualidade colore a tarde alemã...

[1] A castração clitoriana

[2] Dehoi, Enver – Bibliothèque Internationale d’Erotologie - Jean-Jacques Pauvert Éditeur - 1963

[3] Fonte: o inacreditavelmente lindo: “Jeux de Nuages et de la Pluie” – de Michel Beurdeley, Madame Georges Bataille, Kristofer Schipper, Tchang Fou-Jouei, Jaques Pimpaneau – Office Du Livre - 1969

[4] Religião e Direito, ambos se confundem, islâmicos.

[5] Crítica do Juízo de Gosto


Lúcio Autran

http://lucioautran.blogspot.com.br/

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